Reflexão
Tanto epistemologicamente
quanto ontologicamente estamos cada vez mais nos deparando com o que é radicalmente diferente
do “incerto”. Epistemologicamente, todo
esforço de prospecção é baseado em alguma combinação de extrapolações, de teorias, e de conhecimentos tácitos formulados sobre uma visível
continuidade entre o passado e o futuro. Entretanto, os efeitos
combinados de mudanças radicais
que afetam profundamente a direção
da história comprometem nossa habilidade de reconhecer padrões
vigentes tanto no passado quanto no futuro reduzindo, assim, as possibilidades de previsão e levando-nos a
deparar com o que parece ser inconcebível.
Este argumento epistemológico está aberto
a críticas por
parte da- queles
que acreditam que podem identificar “longos ciclos da história” e, desta forma, prever o futuro, pelo menos em linhas
gerais.
Todavia, o argumento ontológico refuta essa visão,
reforçando a tese
da “inconcebivilidade”.
A visão ontológica é bem apresentada pelo argumento de Karl Popper que, de um
ponto de vista lógico,
diz que o conhecimento presente
não pode ter noção do conteúdo do conhecimento radicalmente novo. Considerando que a nossa época
tem sido caracterizada por
rápidas transformações no conhecimento com implicações sociais
radicais, esse fato já seria suficiente para suportar a
hipótese de que
estamos diante da “inconcebivilidade ontológica”. Bastaria mencionar a
possibilidade de determinação do gênero durante a concepção, a
clonagem humana, ou ainda outras formas extremas de intervenção genética para demonstrar o
seguinte ponto: essas tecnologias emergentes
causam uma ruptura na história resultando, assim, num mundo
inconcebível.
Todavia não é apenas a
certeza de tais revoluções científicas que nos levam
à “inconcebivilidade”. Todas as grandes tendências da história
es- tão passando por transformações radicais, incluindo-se o
tamanho das populações e
suas composições, as estruturas de poder, as culturas e os quadros de valores,
as alterações climáticas, entre outros. Em consequência, ao longo do século vinte e um, muitas noções da realidade assumirão formas inconcebíveis no presente.
Isto é também verdade quando se olha o passado. Basta mencionar a desintegração da União
Soviética; o desenvolvimento dos efeitos
da globalização
que não entendemos, apesar de sua visibilidade; e, o choque econômico no Sudeste da Ásia
para
ilustrar o fato de que o inconcebível já está entre nós.
Minha avaliação geral é que nós estamos no meio de um conjunto de processos de mudança que produz a passagem de etapas remetendo- nos ao inconcebível. Isto aconteceu também no passado, com a introdução do fogo, a transição para
a agricultura, a
emergência para
novas for- mas de fé e conscientização, entre
outros momentos. Mas, a mudança foi mais lenta e não tocou o gênero humano. Portanto,
minha avaliação é de que estamos caminhando para
a mudança de fase mais radical
que a humanidade já viveu.
É verdade que
o presente processo de mudança de fase também leva algum
tempo e que o mais importante agente da história,
ou seja, as características centrais
do ser humano como uma
espécie são, presentemente, estáveis.
Entretanto, o processo de mudança se acelera
e se aprofunda. Além disso, com respeito às características básicas do ser humano, não apenas nós não sabemos o
que seria um indivíduo “hard-wired” e
o que seria culturalmente modificável
e estaria se modificando, mas o que é certo é que a humanidade irá intervir em sua estrutura e em seus processos bio-neurológicos. Em consequência, os processos de mudança em curso estão produzindo a
mais radical ruptura na continuidade. Uma ruptura comparável
em termos de
“inconcebivilidade”, por exemplo, à chance muito menor de encontrar vida inteligente em seres extraterrestre.
A imaginação, contudo, não pode nos ajudar? Temos notícia
de pensadores que,
no passado, imaginaram
certos traços
a respeito do futuro que eram virtualmente inconcebíveis no seu tempo. Ademais, muitos
alegam, hoje em dia, serem capazes de considerar o que chamo
de “inconcebível” como, por exemplo, o de se estabelecer os primeiros contatos
com seres de outros planetas.
Apesar disso, aqueles que dizem que consideram o
inconcebível não me impressionam. Suas formulações contam muito pouco
e podem até fazer
algum bem
por nos alertar
para a chance de rupturas na história. Não obstante, suas visões substantivas a
respeito de como o mundo pode- rá vir a ser depois da reengenharia dos seres humanos, depois dos visitantes de fora do planeta, depois da guerra biológica mundial numa escala sem proporções, não
têm base alguma – nem epistemológica nem ontológica. Além do mais, a possibilidade hipotética
de que,
no futuro, algum Novo
Mundo presentemente imaginado deva ser tomado como profético não nos ajuda a decidir agora qual visão de “futuro radical” vale- ria a pena ser, de alguma forma,
levada
em consideração.
Entretanto, é pouco plausível que alguma dessas
visões do presente possa vir a ser admirada no futuro como tendo sido uma previsão do que viria a ocorrer. Futuros imaginados discutidos em conferências e
na literatura sobre o futuro não são nem sequer “radicais”. Geralmente, essas visões são bastante dóceis assumindo, pelo menos tacitamente, que o futuro transformado poderá ser encaixado nas principais categorias
e valores do presente. A imaginação que realmente poderia ao menos ilustrar a “inconcebivilidade” sem prever é, de fato, muito
rara.
Colocar a “inconcebivilidade” no centro
das considerações futuras, preparar-se para a mesma e tentar influenciar essa possibilidade implica várias questões. Apenas para ilustrar, quatro delas seriam:
- Slogans
como o do “desenvolvimento sustentável” pode ser reconhecido como fundamentalmente incompleto na sua premissa da
possibilidade e desejo de continuidade no longo prazo das características principais da
existência humana. Em vez disso, esforços
te- riam que ser dirigidos para aceitar e utilizar
mudanças radicais para aumentar
o potencial evolucionário sem se fixar nos conceitos
de “recursos”
do presente. Certamente, catástrofes em grande escala que ameaçam a
sobrevivência da humanidade ou produzem sofri- mentos generalizados devem ser evitados, mas
isto é muito diferente
da maioria das noções de “sustentabilidade”.
- A inevitabilidade dos traumas sociais requer grandes esforços para
reduzir os perigos e os custos
ajudando, por exemplo, as socieda-
des a estabelecerem redes de segurança e a conterem as
possíveis reações violentas.
- Governos devem
construir capacidades para fortalecer os recur-
sos sociais para enfrentar mudanças de fases e impor certos
con- troles em suas direções e efeitos. Esta não é uma matéria que possa ser deixada para
o mercado e a sociedade civil. Ao contrário, go- vernos, incluindo os mecanismos de
governança global, devem ser fortalecidos de maneira radical em sua autoridade e
na melhora de capacidades cognitivas para assim alcançar, minimamente,
objetivos de evitar
catástrofes e reduzir custos sociais.
- As comunidades epistêmicas dos planejadores de políticas e estudiosos do futuro devem ser muito
mais sensíveis à “inconcebivilidade”, colocando ênfase
na criatividade
das opções, alternativas
mais elásticas, e lidar com crises sendo, ao
mesmo tem- po, céticas sobre previsões estreitas. A
presunção de prever o futu- ro de longo prazo
deve ser evitada, visões prospectivas sem limites contingenciados devem ser a regra, e “pensando o
ano 3000” de- verá ser tomada como uma presunção estúpida,
que de fato é.
Todavia é preciso fazer
mais.
A emergência da probabilidade traz uma revolução no pensamento e no processo decisório.
Na realidade, em toda a percepção da realidade. Nada
menos do que uma
revolução em conceitos cognitivos e
modelos de pensamento é necessária para
se tentar lidar com a crescente “inconcebivilidade”.
Este é o desafio
primordial com que nós, analistas políticos e profissionais, nos defrontamos.
O Autor
YEHEZKEL DROR. Professor do Departamento de Ciência Política da Hebrew University, Jerusalem, Israel. O presente texto foi extraído de “Technological Forecasting and Social
Change”, Elsevier
Science Inc. New York, 1999.
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